Guia de Visita

ENER1000 E UNIC

António Dias de Figueiredo foi o promotor de um projeto muito especial, o do primeiro PC inteiramente projetado em Portugal, o ENER 1000 (e o seu sucessor UNIC) que hoje vemos em exposição.
António Dias de Figueiredo é professor catedrático aposentado do Departamento de Engenharia Informática da Universidade de Coimbra e investigador do Centro de Informática e Sistemas da Universidade de Coimbra (CISUC). Licenciou-se em Engenharia Electrotécnica pela Universidade do Porto em 1970, doutorou-se em “Computer Science” pela Universidade de Manchester em 1976 e obteve Agregação em Engenharia Informática pela Universidade de Coimbra em 1982.
Entre 1984 e 2007 foi professor catedrático da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, onde fundou o CISUC, em 1991, e o Departamento de Engenharia Informática, em 1994. Foi também um dos fundadores do Instituto Pedro Nunes, em 1991 e, entre diversas atividades relevantes, foi o proponente, em 1985, do Projecto MINERVA (de introdução dos recursos informáticos na educação não superior em Portugal), tendo coordenado nacionalmente o mesmo projeto durante a sua fase piloto, entre Outubro de 1985 e Outubro de 1988.
Sobre o ENER, o próprio António Dias Figueiredo escreve em 2004 em “A Engenharia em Portugal no séc. XX”, publicado em M. Heitor, J. M. Brandão de Brito, e M. F. Rolo (Editores), o seguinte texto que apresentamos com ligeiras adaptações e imagens ilustrativas.
“A ideia que conduziu ao aparecimento do ENER 1000, o primeiro PC inteiramente projectado em Portugal, surgiu em 1978. Baseava-se na experiência adquirida por Dias de Figueiredo na Universidade de Manchester, onde tinha projectado, em 1973, a unidade central do MOSAIC (Modular Online Signal Analysis and Instrumentation Computer), um computador modular desenvolvido por aquela universidade para a Organização Mundial de Saúde.”
“Anos mais tarde, aquele investigador viria a tomar conhecimento, numa conferência, de um projecto mais recente, desenvolvido na Escola Politécnica Federal de Lausanne, onde um barramento passivo idêntico ao usado pelo MOSAIC para interligar os módulos servia agora de base a um computador modular muito mais pequeno, que recorria aos microprocessadores de 8 bits que a Intel e a Motorola tinham, entretanto, começado a colocar no mercado.”
“De regresso a Portugal, ao Departamento de Física da Universidade de Coimbra, onde integrava o grupo de Instrumentação, liderado por Nabais Conde, apercebeu-se de que Carlos Correia, um doutorando do grupo, teria grande vantagem em construir um “estaleiro” controlado por micro-processador, inspirado no modelo de Lausanne, onde pudesse, muito mais facilmente, configurar as suas montagens de instrumentação de física nuclear. Carlos Correia gostou da ideia e adoptou-a para o prosseguimento do seu doutoramento, construindo um sistema com várias placas, ou módulos: uma placa de processamento central, com um microprocessador Intel, placas de memória, placas de interface para monitor e teclado e placas para ligação às experiências físicas.”
“Dias de Figueiredo transferiria entretanto as suas funções para o Departamento de Engenharia Electrotécnica da Universidade de Coimbra e, ao constituir aí um novo grupo, propôs a um dos seus assistentes, João Gabriel Silva, que se associasse ao projecto de Carlos Correia, para procurar transformá-lo, agora, num verdadeiro computador. Para isso, seria necessário projectar e construir controladores de disco e instalar um sistema operativo comercial (viria a ser adoptado para o efeito o, então líder do mercado, sistema CP/M, da Digital Research, que anos mais tarde viria a ser destronado pelo MS-DOS, um sistema operativo rival, produzido por uma empresa então surgida, denominada Microsoft). Foi essa a tarefa que João Gabriel, entretanto apoiado por outros colegas, assumiu com grande empenho.”
“Reconheceu-se, entretanto, a necessidade de proceder a uma revisão profunda do barramento de Lausanne, para permitir a evolução da arquitectura e a adopção de tipos mais recentes de microprocessador. Em Setembro de 1981 ficaria concluída a primeira versão da nova especificação, que, depois de melhorada, seria apresentada na “Portugal Workshop on Signal Processing and Its Applications”, na Póvoa do Varzim, em Setembro de 1982.”
“Assim nasceria o primeiro computador português. José Guedes, um industrial da Figueira da Foz que tinha acabado de criar a Enertrónica, uma empresa para o fabrico de pequenos equipamentos electrónicos e de gestão de energia, interessou-se em produzir o novo computador, para o qual propôs a designação de ENER 1000.”
“O ENER 1000 seria o vencedor do Prémio Inovação da ENDIEL 83 e começaria a ser produzido no início de 1984.”
“Nos primeiros meses da produção do ENER 1000 a reacção do mercado foi favorável e o número de clientes aumentou rapidamente. No entanto, a gestão de qualidade que a Enertrónica exercia na linha de produção degradou-se rapidamente quando o mercado começou a expandir-se. Discórdias relativamente a este aspecto, entre o grupo da Universidade de Coimbra, que pretendia vê-lo particularmente bem cuidado, e o fabricante, que não se sentia sensibilizado para a sua importância, viria a provocar a rotura do entendimento entre as duas partes.”
“Em 28 de Janeiro de 1986 seria apresentado à imprensa o resultado de uma reformulação profunda do ENER 1000, realizada pelo Departamento de Engenharia Electrotécnica da Universidade de Coimbra. A nova máquina, designada por UNIC (de “Universidade de Coimbra” segundo o próprio autor), era agora produzida pela RIMA, uma grande empresa nacional, com longos pergaminhos no fornecimento de serviços de informática e equipamentos de grandes dimensões (da Nixdorf, uma das mais prestigiadas empresas europeias de computadores). No dia seguinte, o grande público teria acesso ao UNIC na 7ª FILEME, realizada em Lisboa.”
“O UNIC não pretendia competir no mercado dos computadores pessoais, onde a sua arquitectura altamente modular tinha dificuldade em afirmar-se pelo preço, mas sim no mercado das aplicações específicas de controlo industrial, instrumentação e comércio.”
“O sistema aceitava, à escolha, processadores de 8 bits (Z80-A), muito versáteis para controlo industrial, e processadores de 16 bits (8088), mais úteis para aplicações em redes locais, de teleprocessamento e de ligação à Telepac, a telex e a teletex.”
“O ENER 1000 terá vendido no máximo uma centena de unidades sendo que um dos clientes de referência terão sido os CTT.”
Reação do mercado: Recorte do Diário de Lisboa
Detalhes técnicos adicionais
O ENER 1000 era um sistema modular, assente em até 8 cartões eurocard, que na configuração mínima utilizava 4 cartões:
  • cartão de CPU com 2 KB de EPROM
  • cartão 64/128 KB de DRAM
  • cartão com interface série
  • cartão com controlador de disquetes
Foram ainda construídos outros módulos como:
  • unidade de virgula flutuante por hardware
  • processador 6809 com 4K EPROM, 2K RAM e temporizador
  • processador 8088
  • 16K de RAM/ROM estática
  • unidade gráfica – alfanumérica para traçado de espectros
  • módulo light-pen
  • ADC rápido para aplicações em Física Nuclear
  • DAC quádruplo de 8 bit
  • nó de rede local
  • controlador Winchester de 5″ 1/4
  • controlador CRT e teclado
  • ports série síncronos (HDLC e SDLC)
  • conversores A/D e D/A de 12 bit
  • controlador de DMA
O ENER 1000 para além de se apresentar como um PC podia ser configurado como computador multiposto. A sua configuração máxima podia suportar 4 utilizadores com 7 terminais.
Em termos de aplicações, disponibilizava gestão de stocks, processamento de salários e contabilidade.
Qual o estado do ENER 1000 nos dias de hoje?
João Gabriel Silva, recentemente saído do papel de reitor da Universidade de Coimbra, autoimpôs o objetivo de restaurar estes equipamentos para que vejam a luz do dia em toda a sua plenitude. A tarefa não se tem afigurado fácil e temos acompanhado a mesma com interesse e atenção. Mas há progressos e neste momento uma luz ao fim do túnel.
No âmbito deste trabalho, temos tido a oportunidade de compreender mais alguns detalhes sobre a conceção do ENER 1000 e um, que para nós era relevante, era identificar os principais intervenientes no processo.
Assim, foi-nos referido que:
  • Carlos Correia (falecido em 2018) trabalhou no cartão de CPU e de interface série.
  • Francisco Fraga trabalhou no cartão de memória.
  • João Gabriel Silva construiu o cartão controlador de disquetes e desenvolveu todo o software de sistema, quer para adaptação do CP/M quer para os diversos utilitários e programas de suporte, para além da coordenação geral do projeto.
  • Henrique Madeira trabalhou com Carlos Henggeler no hardware da placa de vídeo, António José Mendes trabalhou no respetivo software.
  • Amílcar Cardoso trabalhou no cartão com processador Motorola 6809.
  • Luís Ramos trabalhou num gravador de EPROMs.
  • Edmundo Monteiro no cartão X.25.
  • Fernando Boavida na placa Token Bus.
  • Mário Rela na interface Série e Paralela que foi usada no modelo seguinte.
E para quem seguiu Engenharia Informática na Universidade de Coimbra, todos estes nomes são imediatamente reconhecíveis e um motivo de orgulho muito especial.
Na foto, António José Mendes, Henrique Madeira e João Gabriel Silva
À esquerda na secretária, debaixo da impressora, um ENER 1000 de secretária como o exposto no Museu.
A Máquina de Escrever Eletrónica e o Escritório Eletrónico de Coimbra
Texto adaptado do referido artigo: “A Engenharia em Portugal no séc. XX” de António Dias Figueiredo.
O mesmo Grupo de Informática e Sistemas do Departamento de Engenharia Electrotécnica da Universidade de Coimbra envolveu-se também de forma directa no apoio a empresas nacionais. É neste contexto que surge uma colaboração com a Messa, empresa nacional com grandes tradições, que se dedicava ao fabrico de máquinas de escrever mecânicas e a quem ajudaram a dar o salto diretamente para tecnologia eletrónica.
Máquinas de escrever Messa Eletrónica em duas cores.
Eduardo Sá Marta, do grupo de Coimbra, viria a conceber uma solução para o problema mais complexo dos equipamentos de impressão da época – o do amortecimento das oscilações mecânicas da cabeça de impressão – mediante um processo eletrónico que trazia diversas outras vantagens para o desenvolvimento de máquinas mais pequenas e leves.
O primeiro protótipo da máquina seria apresentado na Endiel, no Porto, em 1983. Seguir-se-ia a apresentação internacional, na Feira de Hannover de 1984, onde se revelaria um sucesso.
Várias marcas europeias se mostrariam interessadas, e a Triumph-Adler, uma das mais respeitáveis do mercado, faria deslocar os seus engenheiros à Messa, durante uma semana, para fazerem testes, e acabaria por propor-se adquirir 200.000 unidades por ano. Tinha-se chegado ao ponto em que havia projecto, havia protótipo e havia mercado. Faltava o investimento inicial para arrancar com a produção.
Infelizmente a situação financeira da Messa tinha-se, entretanto, degradado e a mesma, entrando em processo de falência foi entregue ao Instituto de Participações do Estado, que deixaria a empresa ir morrendo de morte lenta, sem tomar qualquer decisão quanto à máquina electrónica. A Triumph-Adler, na falta de resposta, desvinculou-se do processo passado algum tempo.
Durante este processo da Messa, foi anunciado pela Universidade de Coimbra o projeto de um escritório electrónico integrado que infelizmente foi também arrastado pela indefinição da situação da máquina de escrever.
A Messa desempenhava, de facto, um papel central na estratégia de Coimbra. O activo que o grupo de Coimbra mais pretendia valorizar era o circuito de distribuição da Messa, implantado em sessenta países, e que, apesar da situação financeira difícil da empresa, se mantinha, na altura, praticamente intacto em termos de imagem. Produzir equipamento electrónico de escritório para um tal circuito de distribuição significava obter com facilidade um mercado internacional invejável, com uma imagem de marca já estabelecida, precisamente no ramo de escritório, até aí ocupado pelas máquinas que a Messa vendia com a perfeita satisfação dos seus clientes internacionais. A seguir à máquina electrónica, pretendia-se colocar impressoras nesse mercado que na altura já valia dois biliões de dólares, lançando um modelo directamente resultante da máquina electrónica.
Partindo da periferia, representada pelas impressoras e outro equipamento terminal, ir-se-ia progredindo para o núcleo do sistema, alargando a oferta com pequenos computadores de escritório (baseados no Ener/UNIC) e redes locais (estava então em projecto uma rede local para o Ener/UNIC – a rede C-Net).
ENER de bastidor visível na foto à direita juntamente com protótipo da Messa Eletrónica interligada com o mesmo.
É justo reconhecer que o trabalho efetuado nestes projetos deu origem a muitas das linhas de investigação atualmente existentes no DEI/CISUC, da Engenharia de Software à Computação Confiável e Comunicação e Telemática.